sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

"O Dia Antes da Felicidade"


O dia antes da Felicidade
de Erri De Luca
Edição/reimpressão: 2009
Páginas: 104
Editor: Bertrand Editora

Sinopse
A história de uma criança nascida em Nápoles durante a Segunda Guerra Mundial. Órfã, é adoptada e o livro segue o seu crescimento, a sua visão da guerra, do sofrimento humano mas também do amor e da possibilidade de alcançar a paz e a felicidade.

"Retomei o meu lugar à baliza. Deixavam-me jogar com eles porque ia buscar a bola aonde quer que ela fosse parar. Destino habitual era a varanda do primeiro andar, uma casa abandonada. O rumor era o de que morava lá um fantasma. Os prédios velhos tinham alçapões tapados, passagens secretas, delitos e amores. Os prédios velhos eram ninhos de fantasmas."

Criticas de impressa
"Uma grande fábula feita de uma escrita de límpida timidez"
La Repubblica

"Romance coeso e forte, como se lêem poucos nestes dias em Itália, onde até a lìngua áspera de De Luca parece fazer-se mais líquida"
L´A vvenire

 " O autor regressa à sua memória de infância, faz-se rapaz para criar um grande livro."
L´Arena

"Quando se tem a sorte de encontrar um livro como este recuperamos a confiança na vida e a esperança num mundo menos bárbaro."
Corriere Della Sera

Autor
Erri de Luca, escritor, poeta e tradutor, é um dos mais conceituados autores italianos contemporâneos. Nasceu em Nápoles em 1950 e publicou o seu primeiro livro quando tinha quase 40 anos. Antes disso, foi membro activo do movimento "Luta Continua" e fez diversos trabalhos manuais em África, França e Itália: camionista, operário e construtor civil. Estudou sozinho o hebraico e traduziu vários livros da Bíblia. Colabora com diversos periódicos, entre os quais La Repubblica e Il Manifesto.
O Dia Antes da Felicidade, não saiu do top italiano desde a sua publicação, tendo estado várias semanas em primeiro lugar.

Outras obras do autor:
Caroço de Azeitona
Em nome da Mãe
O Peso da Borboleta

Opinião
Um dia antes da felicidade é um livro sobre o crescimento, isto é, da verdadeira e autêntica aprendizagem, daquela que conduz à transformação de um adolescente normal, igual a tantos outros, num ser humano mais elevado, melhor e mais forte.

Mas é também um romance sobre a felicidade, claro. E sobre esse milagre que são os livros e a cultura. E sobre a sensibilidade e a delicadeza. E sobre a amizade. E sobre a violência. E sobre a pobreza. E sobre tantas, tantas outras coisas!

Trata-se de um livro claramente masculino, isto é, quem o escreve é um homem, não há aqui uma escrita feminizada, antes uma escrita senhorial, de uma extrema nobreza e autenticidade. Num tempo em que é tão difícil saber-se o que é ser um homem, este livro constitui uma resposta clara e verdadeira a essa questão.

Lemo-lo e mergulhamos no mundo puro e deslumbrante das palavras de Erri De Luca. O narrador é um jovem com um olhar límpido e franco sobre a realidade que o rodeia. É alguém a quem surge um mestre, Dom Gaetano, que, longe de ensinar o desencanto e a amargura, lhe mostra o que é ser um homem, verdadeiro, bom e lutador.

Erri De Luca usa uma escrita que ilumina tudo aquilo sobre que se debruça: as pessoas (com as suas pequenas e grandes misérias), os livros, a escola, o amor, a cidade de Nápoles, etc.

A dada altura (p.66), Dom Gaetano e o jovem narrador passeiam pela cidade e cruzam-se com um grupo de marinheiros norte-americanos que corriam com "camisola, calções e sapatilhas". Não percebem. Porque, diz, "Correr, para nós, é um verbo sério". E é exactamente isto que escrever é para Erri De Luca: um verbo sério. Em todos os momentos, mesmo os de humor (sempre intenso e inteligente, como em tudo o resto), tudo está lá por um motivo sério. Não há ali nada de supérfluo, de fútil. Tal como em outros livros deste autor. Mas, aqui, neste, levado a um grau extremo, quase doloroso.

Erri De Luca, responde:
As suas histórias têm pessoas concretas. Escreve: “Se lhes chamas gente, não fazes caso das pessoas.” Isto também tem relação com o amor e a necessidade de um rosto?
Claro que há necessidade de um rosto concreto. Também os escritores do chamado doce estilo novo [Petrarca e outros] tinham necessidade de dirigir-se a uma figura feminina concreta. O amor tem essa necessidade. Na frase que citava, há um momento em que, de repente, a multidão à volta e à qual não se liga, fica formada por pessoas singulares. Todos os que têm uma identidade dizem-nos respeito pessoalmente.

As suas personagens são também gente pobre, austera, mas nobre e íntegra. Pretende com isso exaltar a pobreza perante uma sociedade de aparências?
Eu conheci a cidade [Nápoles] do pós-guerra, a pobreza. A honestidade, a integridade eram necessárias. Eram uma técnica social para resistir e viver melhor, porque comportavam uma rede, um vínculo a todas as pessoas. Faziam comunidade, era como uma família alargada. E isto era possível com a honestidade, a integridade, a lealdade, a generosidade. São dotes que não são apanágio da pobreza, mas desenvolvem-se melhor na pobreza.
Vivemos num mundo em que estas técnicas sociais já não são necessárias, tornaram-se uma escolha moral. Naquela época eram uma escolha prática.

Nos seus livros regressa sempre ao Vesúvio, à ilha de Ischia, a Nápoles, de onde saiu aos 18 anos, à infância e à adolescência. São lugares e tempos importantes?
Sim, há momentos, na adolescência e na infância, em que a vida corre mais veloz, em que se condensam acontecimentos. Agrada-me regressar aquele ponto para contar e compreender.

Falamos de personagens que são também parcas em palavras. Estamos cheios de palavras?
Sim, de palavras que não têm consequência, que podem ser desmentidas no dia seguinte. A palavra política tornou-se uma palavra publicitária, não mantém aquilo que diz. Estamos num tempo de palavras ligeiras.
Isto é uma vantagem para um escritor: ele tem o monopólio das palavras mais pesadas, das palavras com consequência, uma vez pronunciadas. A palavra literária, e a poética ainda mais, tem um valor acrescentado num tempo charlatão.

Fala sempre de memórias da guerra e conta histórias dentro de histórias. O rapaz deste livro “O Dia Antes da Felicidade” diz que a história da cidade é a sua própria história. Temos necessidade da memória para encontrar a identidade?
Não, precisamos de uma geração que conte à geração seguinte a sua experiência. E que a conte de viva voz, não com o cinema ou a televisão, mas envolvendo-se com o corpo. Precisamos de uma geração que conte e transmita de viva voz e que o faça sem nenhum objectivo didáctico, porque assim passa o tempo, os seus serões, contando a sua vida e aventuras.
A II Guerra, do ponto de vista dos sobreviventes, foi uma imensa matéria narrativa. A memória que me chegou pertencia a esta árvore de transmissão do conhecimento de viva voz. Transmitir a memória não era um objectivo. Hoje, a memória tornou-se uma pílula na televisão para recordar um acontecimento. Isso não é memória, é aceder a um arquivo.

Não temos experiências que valham a pena contar às gerações seguintes?
Não vejo pais que contem histórias... Talvez não tenham nada para contar, excepto as férias que se fazem e as fotografias que tiraram num passeio de barco. Há um défice de transmissão, de tempo...

No “Caroço de Azeitona”, escreve: “Não traz fruto a Revolução quando é só política. Os fracos, os pobres, os ofendidos devem armar-se com outra coisa.” Isto é fruto de uma desilusão política?
Não, não. É fruto da minha experiência. Fui durante 11 anos militante revolucionário a tempo completo. Sem ter ambição de tomar o poder ou de fazer uma revolução política, mudámos o modo de pensar da nossa sociedade.
Fizemos uma revolução não política, uma revolução de mentalidade num país que vinha da guerra, com um governo de um mesmo partido durante 40 anos. O nosso país era atrasado, a única democracia provisória num Mediterrâneo cheio de fascismos: do vosso até à Turquia, passando por Espanha e Grécia.
Era um tempo em que não bastava uma revolução política, era necessária uma transformação das pessoas. E nós estávamos felizes com essa transformação.

Escreve que se pode vencer mais com os salmos de David do que com as armas. O que quer dizer?
Que aquela pessoa de quem estou falando, aquele Jesus na época da ocupação militar romana, baralhava as cartas, forçava os limites.
Havia revolucionários a esmo em Israel. Morriam como moscas nos patíbulos da cruz dos romanos. Ele queria introduzir uma variante, fundada também nos salmos de David, que dizia respeito aquele tempo e aquela pessoa. Não saímos ainda fora do âmbito dos salmos.

É verdade que começa o dia lendo versículos da Bíblia “para que o dia tenha um fio condutor”?
Acordo todos os dias estudando o hebraico antigo. Não sou crente. Tenho necessidade disso para despertar, como algo que acompanha o café, para forçar a caixa fechada do meu crânio.

Mas o hebraico da Bíblia ou de outros livros?
O hebraico antigo da Bíblia.

Porquê esse fascínio pelo texto bíblico?
Porque aquele é o formato original do qual descende toda a nossa civilização religiosa. Para mim aquele é um texto obrigatório. E aproveito de maneira escandalosa do facto de só eu o conhecer. E de poder desmascarar todas as traduções péssimas, ruins e mal intencionadas. Aproveito o talento que tenho, mas o texto deveria ser conhecido por todos.

É nesse sentido que fala da Bíblia como um caroço de azeitona?
Sim. As palavras que lia de manhã, quando trabalhava como operário, tinha-as como companhia para todo o resto do dia. Remastigava-as no trabalho das obras e fazia como se fosse um caroço de azeitona que me ficava na boca.

Quando fala de caroço de azeitona, quer dizer que a Bíblia é, como dizem os cristãos, um alimento?
Um aperitivo.

Já traduziu vários livros da Bíblia, escreveu “Em Nome da Mãe”, uma das mais belas narrativas ficcionadas do nascimento de Jesus. Há um livro ou uma personagem da Bíblia de que goste mais?
José. Nenhum dos evangelhos diz que era velho, podemos imaginá-lo jovem, belo e enamorado.
O seu nome vem do verbo hebraico yasaf, que quer dizer acrescentar. Yosef, à letra, é aquele que acrescenta. E o que acrescenta ele? Para já, a sua fé. Ele acredita na versão da sua noiva, grávida mas não dele. Acrescenta a sua fé à fé da rapariga que tinha acolhido aquela notícia.
Acrescenta-se ainda como esposo daquela rapariga, impedindo assim a condenação à morte, porque ela perante a lei, era adúltera. E acrescenta-se enquanto segundo pai daquela estranha criatura aparecida no meio deles, Jesus, Yeshu em hebraico. Ele contribui e muito para esta história. No evangelho não é tido em conta mas nesses nove meses deu um contributo enorme
Dê um exemplo das más traduções da Bíblia de que falou.
No original hebraico, não está a condenação de Eva de parir com dor. A palavra hebraica é esforço, fadiga. Não é dor, porque ali não há intenção punitiva da divindade. Há apenas uma verificação.
Àqueles dois, que comeram da árvore do conhecimento do bem e do mal e que se encontraram nus, diz: “Vocês tornaram-se outra coisa, não pertencem já a nenhuma espécie animal; nenhuma espécie animal sabe que está nua; aconteceu uma mudança total.”
Está dizendo que a facilidade, a agilidade de parto ou a naturalidade com que os animais têm os filhos não acontecerá mais. E Adão diz logo: “Maldita a terra.” Porquê, se a terra não lhe fez nada? Porque há outra verificação: Adão não se contentará com o fruto espontâneo, mas esforçará a terra, irá afadigá-la também com o seu suor, irá desfrutá-la para tirar o maior lucro. A terra será maldita por causa do esgotamento dos recursos.

Não há, então, um castigo?
Vê-se que não há intenção punitiva, porque logo a seguir a divindade faz vestes de peles para cobrir aqueles dois nus. Este é o gesto mais afectuoso.
A palavra hebraica que aqui é traduzida como dor, aparece outras cinco vezes: quatro nos Provérbios e uma nos Salmos. Cinco vezes em seis é traduzida como esforço e fadiga. Ali, metem na boca da divindade uma condenação. E sobre isto baseou-se toda a subordinação feminina, a culpa de Eva.

Publicou há pouco em Itália um livro com o título “Penúltimas Notícias sobre Jesus”. Que notícias são essas?
São todas tomadas das histórias do Novo Testamento, do evangelho. São penúltimas porque as últimas, as respeitantes ao seu regresso, ao cumprimento da promessa, essas estão em suspenso. O cristianismo vive num intervalo entre o anúncio do fim, feito por Jesus, e o cumprimento deste anúncio. São dois mil anos de intervalo, de tempo suplementar.

E quem é esse Jesus?
É um Jesus em carne e osso, um Jesus ainda vivo, que está um tempo na oficina de carpinteiro do seu pai, até começar a sua missão. Vive num território ocupado militarmente por uma nação hostil, a maior potência militar. E pode dizer “dai a César o que é de César”, porque nada naquela moeda tem poder sobre o mundo. Por isso, é uma figura em carne e osso. Um hebreu daquele tempo.

Classificação: 5/7- Muito Bom

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